Aidil Araújo Lima

Foto: Danilo Martins

Bio

Aidil Araújo Lima é escritora, contista, com raiz no Recôncavo baiano na cidade de Cachoeira. Em sua trajetória de vida participou do Movimento Negro Unificado na cidade do Rio de Janeiro. Retorna para a Bahia, cursa Filosofia na Universidade Católica de Salvador, foi professora, bancária. Cursa Jornalismo sem concluir o curso. Decide voltar para a cidade onde estão suas referências, a mística Cachoeira e dedicar-se a produção literária, escolhendo morar no campo. Premiada no concurso internacional Jubileu de Ouro de Mogi das Cruzes – SP com o conto Ponto de Cruz, publicado em Antologia. Recebeu Menção Honrosa com o conto Resistência do Concurso Literário Cléber Onias Guimarães na cidade de São Paulo. O seu poema Efêmero Gozo foi selecionado e publicado em Antologia em homenagem ao poeta Gonçalves Dias. Na segunda e terceira edição da Revista Philos <camaracartonera@gmail.com>, publica os contos – Contas Sagradas e Mulher escondida. Recebeu Menção de Louvor Especial com o conto Inocência em a Poesia pede Passagem – Poesia sem Fronteiras, entre outros prêmios. Seu livro Mulheres Sagradas de publicação digital pela Amazon recebeu o seguinte comentário do escritor Jeremias Bimbatti Filho em 7 de maio de 2016 – Aidil Araújo Lima, também responsável por “FIO DE SILÊNCIO”, “INSABAS” e “VELADO”, entende sobre o que escreve. O misticismo sagrado ou a natureza estão profundamente conectados com as palavras das frases. Os enredos curtos dão importância à simplicidade de mulheres batalhadoras, um lado forte da cultura brasileira. Consegui sentir cada história como se estivesse ali na Bahia. O texto traz paz e esperança para o leitor após a leitura. Parabéns por me mostrar uma cultura tão enriquecedora! Você tem um dom brilhante!

Produção Literária

Ponto de Cruz

Seu dia começara cedo. Na verdade, A noite de Vera foi em clara agonia, aguardava ansiosa o dia, buscava na memória pensamento que acalmasse o corpo, nenhum pensamento vinha na lembrança, o corpo suava, sentia dores nas entranhas como se fosse parir de desejo. Do lado, o marido alheio a tudo, roncava. Levantou-se sorrateiramente, as horas andam ligeiras quando não nos lembramos dela; resolveu adiantar detalhes do caldo. Sossegou o facho, abria os sururus um a um e os retirava de dentro da casca, fez até lembrança de uma música de criança, absolveu-se, nem sentiu o tempo se arrastando. O sol lhe sorriu através da fresta do telhado. Limpou a casa com o cuidado de quem espera a felicidade. – Bota meu café mulher, gritou o marido, com mau humor tão certo. Neste dia ela nem deu assunto, alma em festa, colocou a chaleira no fogo, pegou ovos no quintal – fritou-os na manteiga de garrafa. Apanhou o leite na porta – levou ao fogo, tudo pronto, serviu o café como a um estranho – como estrelas que brilham tão longe e a vemos tão perto, seus pensamentos estão ancorados no dia de ontem; ele chegou disfarçando – amanhã venho te ver – faz um caldo. O marido fala, interrompendo suas lembranças – pra quem manca igual à vaca do vizinho, você está rápida hoje mulher. Não deu assunto – hoje seria uma vaca. Com mãos estúpidas ele bate a porta e sai. Ela pega delicadamente os temperos, cortou-os como quem faz carinho, derretia sentimento em cada corte – sentindo suas dores sendo lavadas – penduradas no varal, cheirosas e salientes. As grosserias que sofria dia a dia foram lavadas no banho de folhas de jasmim, ficou cheirosa que nem só. O cheiro de jasmim lhe trouxe o vigor de outrora, olhou-se no espelho – já não era a mesma mulher. Ele achava-a maravilhosa. Dizia não se importar com seu defeito na perna – resultado de um coice, não foi do marido, esse foi um cavalo de verdade. Estava tudo pronto. Bordou ponto de cruz, no pano branco criou uma mulher tão viva, chegou a ouvir seu alegre canto enquanto estendia as roupas coloridas no varal, a espera do homem chegando, ele vinha a abraçava por trás, fazia um chamego, a mulher desenhada no bordado ficava maluca; a bordadeira quase espeta o dedo na agulha nessa transposição do imaginário no tecido, através da arte. Batidas na porta – era ele. Correu e abriu.
Ele nada disse – apenas passou os dedos em seus lábios que umedeceram. Mexeu em seu tempo – já não era mais a mulher infeliz que vivia com um bruto. Era desejada, dissolvia-se por inteira como a manteiga de garrafa – melava-se – enroscava – dissolvia suas mágoas – fundem-se seus corpos em direção ao sol, são inundados pela energia da felicidade plena, infinita como se tivessem soltado o corpo da alma, voavam pelo infinito – passaram pelas estrelas, o oceano, as montanhas da civilização inca – exaustos, felizes, voltaram aos corpos, largados no lençol com bordado de ponto de cruz, esse tinha a figura do sol ao centro, expandindo-se infinitamente. Ficaram em silencio – escutando a respiração. E o caldo? Saboreou como se fossem seus lábios. Pegou-a na nuca e, puxou para si, ela ia dengosa. – Tenho que ir. Ela sabia. Ficou só, olhando o firmamento, revia os lugares idos há poucos instantes, as montanhas, a lua cheia, júpiter. – Mulher, bota meu jantar – gritou novamente o marido. Ela o serviu com olhar distante.

Letras Bordadas

Vez ou outra abria o baú. Sua vida abandonada lá dentro. Tirava todo enxoval, estendia na pedra, expondo ao sol o destino quase escapado. Quarava sua tristeza na sombra da partida do noivo sem regresso. A memória voltava calada, num silêncio amargo. Bordados feitos de sonhos, com cheiro de idade encoberta embaralhava o tempo. O pai sempre dizia que mulher negra não podia se abandonar no prazer, ficava mal dita. Das três irmãs, apenas ela encontrara o amor de respeito. O tal moço de alto conceito, era funcionário público. Ele, o pai, fez muito gosto. Ela enxovalhava deslumbrada por meses intermináveis, até que o baú ficou cheio de coisas com duas letras. Linhas e dedos criaram intimidades desatando nós que amordaçam a vida, trilharam por caminhos distantes, a ponto de o noivo desistir da promessa se encantando por outra. Com coração destroçado silencia o adiado destino. Isolara-se tanto, tão longe, que se esquecera até dos pensamentos. Seguiu virgem sem amores, nem paixões. Às vezes levava o baú para o riacho, lavava toda a roupa ainda virgem e chorava a sua própria morte sem cova. Até que, o vento cansado de tanto tormento, voou pra longe sua camisola branca bordada, sem nunca ser usada. Ela correu atrás e a encontrou pendurada na árvore sagrada de Iansã. Tocou na árvore sentiu o acúmulo da emoção se dissolvendo, desejos incontidos criando doidices, sentimentos abusados fugindo assustados. Iniciou-se mulher de santo, praticou Panã, ritual sagrado, reaprendendo fazer coisas do cotidiano, como lavar roupas, varrer casa, acender fogo, até fazer amor. Seu corpo teve ocasião de ser mexido. Ganhou um destino novo sem solidão.

Fio de silêncio

Se o avô estivesse no mundo dos vivos a soltaria do retrato só com palavras, mas a mentira da vida é nos fazer acreditar que podemos costurar esperanças – pensava enquanto alinhavava os sonhos de outras mulheres. A tarde mornava e seu olhar desincerto, lutava para enfiar a linha na agulha. Amparou os pensamentos nos tecidos, debruçando a vista na janela, esfregou os olhos pensando ser delírio, olhou novamente e, a menina ainda brincava de esconde-esconde, saindo do cemitério dos pretos, correndo para o cemitério dos brancos, depois ela entra na Igreja do Rosarinho, tão cheia de vigor que se desconheceu. Só se reconhece quando a menina lhe acena e sorri. A memória retrocede em cambalhotas de quando era criança, só pelo prazer de ver a cidade virada de cabeça para baixo de lá do alto. Ela não lembra que dia aconteceu a chegada dos turistas, curiosos com o cemitério de brancos e negros, um em frente ao outro. Só recorda que eles a escolheram para tirar foto junto dos túmulos, diziam-lhe ser uma negra linda. Ela se orgulhou e ficou paradinha ao lado de várias catacumbas, sua imagem se impregnando da alma dos antepassados. Depois desse dia nunca mais foi a mesma, sua alegria ficou presa nos retratos. Largou mão do estudo, ia para a casa da madrinha no Largo d’Ajuda aprender a costurar. Pensava que podia descosturar sua vida do retrato e coser outra com agulha e linha. Quando o sol esfriava voltava para casa, descia a ladeira e corria para o rio Paraguaçu, gostava de ver a imagem refletida na água, nesse instante a alegria presa no retrato se soltava e ela ria. O tempo foi curvando seu corpo sobre as linhas, os seios encolhendo dando espaço ao corpo. As moças bonitas que chegavam com panos de seda, só lembravam o seu retrato que os turistas prometeram mandar e nada. Enquanto isso um fio de silêncio costurava sua vida. Certa vez, estava marcando o vestido nos contornos do corpo de uma mulher em frente ao espelho, percebeu seu corpo estragado. Pegou umas contas amarelas largadas num canto, foi enfiando na linha sem nenhuma certeza, só queria matar o tempo, enganar o pensamento. Sentiu um arrepio no corpo. Deus benza. Veio a ideia de pegar ervas de Oxum e lavar o corpo, a água escorreu desenrugando a pele, desembruçando a alma, veio até a vontade cantar, entoou uma música antiga, que sua avó cantava para Oxum. Como é a vida – pensava enquanto descia as escadas em frente ao rio. – Coseu tanto pano, e a esperança estava era nas contas. Inespera o que vê. Os retratos. Todos. Boiando no rio. Rapidamente sua imagem se dissolve. Deu vontade de dançar, de ser mulher tocada, de sentir coisas nunca sentidas.

Publicações

  • Efêmero gozo; em: Antologia Mil Poemas para Gonçalves – poema.

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