Carlos Tourinho de Abreu

Foto: Pascale Engel de Abreu

Bio

Carlos Tourinho de Abreu nasceu em Salvador nos anos 70, e vive no norte da Europa desde 2005. É bacharel em Administração de Empresas pela Universidade Salvador (Unifacs) e possui dois mestrados – University of Durham, Inglaterra e Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro. Atualmente reside no simpático grão-ducado de Luxemburgo e trabalha no projeto de criação da primeira editora da Universidade de Luxemburgo. Possui dois livros publicados, os romances “Tabua” e “Ventos para Areia Branca”. Ambos evidenciam a forte ligação do autor com a cultura do interior baiano.

Produção Literária

Ventos para Areia Branca

Capítulo 1

Chica, a galega de olhos azuis

Cinco e meia da manhã, o galo cantou de um jeito diferente naquele domingo frio de começo de outono. O vento também assoviava fino e sacudia as árvores, mais uma vez anunciando a suposta chuva que por semanas recusava-se a cair. Apesar de o galo ser o mesmo de sempre – viçosa ave que o meu falecido sogro português designou como um descendente meio-sangue de um típico Galo de Barcelos lusitano –, o agouro que veio no seu clarinar fez-me arrepiar da cabeça aos pés e de súbito pular da cama direto para o meu pequeno altar. Posicionado logo ao lado da janela da casa-grande – hoje em dia já não tão grande assim – do engenho em que vivíamos, acendi três velas para São Tiago Maior e pedi pela saúde de todos os meus. Senti-me uma autêntica auguratriz.

Estranho o porquê de tanta fé em São Tiago, pois sem dúvida não era o mais popular dos santos dentre as carolas de Areia Branca – pequeno povoado bem perto de nós, nas cercanias de Piritiba –, lugar onde íamos assistir à missa semestral do padre Boiro, nos raros domingos que ele aparecia. Talvez tanta fé tenha sido indiretamente deixada como herança por mamãe, diziam os mais velhos, uma mulher de bom coração e trabalhadora, cuja convivência não tive o prazer de usufruir.

Compensei a ausência de minha mãe agarrando-me ao trabalho e nunca deixando faltar amor aos meus filhos e netos. Amor esse que não recebi quando criança, muito menos quando mulher-feita. Casei-me por conveniência, pois a família que me criou não via a hora de se livrar do fardo que carregou por pouco mais de quatorze anos, além disso, os bem-arranjados Miranda precisavam de uma esposa para Eupídio, o seu filho mais velho e quase ermitão.

O varão da família Miranda detinha tal fama porque até o dia do nosso casamento vivia isolado a trabalhar nesta mesma casa de engenho, deste mesmo sítio, no qual agora eu vivo enfurnada, até hoje. Dali não mais saí desde o dia das nossas bodas, com raras exceções, como na época em que fui visitar minha filha em Salvador, a capital do nosso estado. No entanto, só tive essa prerrogativa quando Eupídio morreu, em 1980, há nove anos. De 1915, ano em que me casei, até então, eu passei a ser a mais nova “ermitã” – herdei o apelido do meu marido –, já que dali por diante Eupídio sentiu-se mais seguro em deixar o seu patrimônio aos cuidados dos agregados – é claro, todos eles sob a minha supervisão – e passou a aventurar-se em viagens mais demoradas rumo a Feira de Santana, lugar onde ele vendia a melhores preços todo o açúcar, rapadura, cachaça, e principalmente farinha de mandioca, que nós produzíamos. A parte boa era que ele voltava abarrotado de novidades provindas dos quatro cantos do país. Disto eu nunca pude reclamar, Eupídio sempre foi um homem de fartura. Nossa casa sempre teve comida em abundância.

Meu marido viveu a sua vida sem nunca ter aprendido a ler. Ignorante em relação às letras, foi um sertanejo voltado única e exclusivamente para o trabalho duro. Já o seu pai, o velho Manuel Joaquim, muito pelo contrário, era um homem relaxado e, dizem as más línguas que, passou a vida procurando quem inventou o trabalho para poder torturá-lo e depois mandar matá-lo. Preguiçoso como um cágado, não se dava o trabalho nem sequer de ter cuidado com a sua própria higiene pessoal. Banho passava longe dele, posso dizer com conhecimento de causa, visto que o infeliz viveu conosco no engenho até o fim e ninguém lhe convencia a lavar-se. Fedia como um gambá! Os mais velhos diziam que esse, dentre outros, deve ter sido o motivo que mais contribuiu para a morte prematura de sua esposa, Maria de São Pedro. Filha de índios da região, criaturas que sempre tiveram o banho como sagrado, talvez ela tenha sucumbido ao fedor que emanava do bode velho.

Eu particularmente sempre gostei de banhar-me. Dentre os tantos hábitos indígenas tão presentes no nosso cotidiano, o de lavar-me ao menos uma vez ao dia tornou-se questão indiscutível. Mas nós não somente herdamos este costume dos nossos místicos anfitriões. De banhos, rituais e chás de ervas, a garrafadas medicinais, não deixei nada escapar do que passava aos meus olhos vívidos todos os dias da minha infância. Boa parte das agregadas da fazenda em que eu cresci era índia pura, ou cabocla bem puxada, todas elas muito instruídas na cultura milenar do seu povo, de todos, o mais legitimamente brasileiro. Contudo, não me dava por satisfeita, queria também aprender o traço principal da minha própria cultura, a habilidade da leitura e escrita.

Como descendente de brancos, desejava me integrar ao povo que comungava da minha mesma origem, ainda que houvesse muita resistência por parte da minha madrasta, Dona Filó Alves Lima. Apesar de toda a birra, com muito custo consegui aprender a ler e escrever quando ainda era uma miúda. Convenci a professorinha que ensinava as duas filhas mais velhas dos Alves Lima a igualmente lecionar para mim. Ela, como amante da educação e idealista, não hesitou. Nunca vou me esquecer do rosto da professora Rosa. Foi a responsável por tirar uma criança triste e carente das trevas em que lhe fora impelida nos seus primeiros anos de existência. Os livros que ela de forma desprendida me emprestava, sem dúvida deram-me uma nova razão para viver.

Daquela época em diante eu nunca mais parei de ler. Romances, revistas, jornais velhos, e até alguns clássicos passaram pelas minhas mãos. Passei a adorar Eça de Queirós e Machado de Assis, principalmente quando consegui compreendê-los melhor por conta da prática. Sempre tinha comigo um dicionário velho, dos que as palavras ainda eram escritas com “ph” em vez de “f”, para me auxiliar. Ele me fora generosamente doado pela professora Rosa, recordo-me com carinho. Já o ato de escrever, esse era difícil praticar, pois havia pouco papel, e pior, não tinha para quem escrever em meio àquele bando de analfabetos a me circundar.

Publicações

  • Ventos Para Areia Branca (Taurus Edições), 2014 – romance;
  • Tabua - Segunda Edição (Taurus Edições), 2014 – romance;
  • Tabua (Escrituras Editoras), 2011 – romance.

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