Coracy Bessa

Foto: Jorge Luis Andrade Borges

Bio

Participou de concursos literários estaduais, nacionais e um internacional (Prêmio Hebron de Literatura – 3º lugar) em Curia, Portugal, pela União de Médicos Escritores e Artistas Lusófonos (UMEAL).  É membro emérito da Academia Brasileira de Médicos Escritores (ABRAMES). Membro correspondente da ALPAS 21 (RS) e da ALUBRA (SP). Participou dos grupos Maturart e Reluzir, de teatro amador, como atriz e dramaturga.

Produção Literária

Paternidade

— “Não sei!!!”.

O grito perfurou-lhe os tímpanos e cravou-se em seu coração. Naquele momento eterno, a certeza de que, pela primeira vez, ela dizia a verdade, atingiu-o como um raio, siderando-o em sua investida assassina. Viu-lhe o rosto transtornado pelo terror transformar-se numa máscara de ódio e, a seguir, de desprezo. Pareceu-lhe, numa louca fantasia, ver-se refletido num espelho deformante onde, ao menor movimento, sua imagem se contorcia e agigantava-se para, de imediato, retrair-se, diminuindo grotescamente o corpo enquanto o rosto ocupava todo o seu campo de visão. Porque o que via no rosto dela era, certamente, o que ela via no seu. Quando os soluços dela, num crescendo infernal, ecoaram pelos cantos do quarto, o choro da criança, imperativo, quebrou a tragicidade do momento. Num distanciamento embotado pela dor, observou-a: as mamas túrgidas molhando a camisola, o ventre ainda distendido pelo puerpério, os tornozelos edemaciados sobre as pantufas azuis, e o nariz a escorrer — limpado apressadamente na borda do lençol. Viu-a levantar-se, oscilante, e dirigir-se ao berço da menina. Odiou-as. Deixou-se cair no leito e “apagou”.

O silêncio do crepúsculo o acordou. Nenhum ruído vagava pelo apartamento. Pensou ter despertado na madrugada. Sentiu-se estranho. Percebeu, então, o berço vazio, a cama vazia, a vida, vazia. Não precisava conferir os armários: sabia que ela se fora. Sentiu uma espécie de alívio ou, pelo menos, uma trégua — porque estava exausto! Exausto daqueles meses torturantes, do casamento apressado, do corre-corre para arranjar um apartamento antes que o bebê chegasse. O bebê que pensara seu…

Nauseado, o tesão do mijo o fez correr para o banheiro. O vômito explodiu na parede do sanitário enquanto a cascata citrina borbulhava-lhe na mão, a caminho do vaso.

Teria que limpar tudo sozinho. A faxineira só viria no sábado, pensou com desânimo. Entrou de roupa e tudo embaixo do chuveiro. Pelo menos, os cheiros de azedo e urina não ficariam impregnados nas roupas e chinelos. Riu, como louco, sentindo a água quente encharcá-lo, enfumaçando o ambiente. Lembrou-se do livro que lera, onde o personagem-título, abandonado pela mulher, passara a desenvolver táticas de sobrevivência de solitário: o lençol, costurado como um saco, para servir ao mesmo tempo de coberta e forro de colchão; as roupas internas, lavadas no banho, vestidas, e outras economias de tempo e de gastos. Riu, como louco. E chorou, como louco…

Quando telefonaram do trabalho, no dia seguinte, disse estar doente — e não mentira. Perambulou pela sala, esvaziou a geladeira — a pilha de pratos crescendo na pia com detergente. O lixo azedo começou a incomodá-lo. Abriu pela primeira vez a porta, na quinta à noite, colocando-o no corredor de serviço. O telefone, ele o desligara desde o primeiro dia: não queria ser pressionado pelos colegas de trabalho. Precisava de tempo. Recapitulou, pela enésima vez, os fatos.

Laurinha passava, a caminho da escola. Mulata clara, lábios carnudos, cintura fina, tipo violão, como se dizia então. Pernas grossas, meias soquetes, mocassins lustrosos. Busto empinado, mais para roliça, metida à gostosa. Unhas longas, esmalte rubro, sombras nos olhos. “Avançada!”, classificou-a Joel — mas caiu-lhe no dengo…

Passou a esperá-la no ponto de ônibus, chegando atrasado às aulas na Faculdade. Precisava ter cuidado para não perder por faltas as muitas matérias do curso, na metade.

Os ciúmes começaram ao vê-la conversando com outro rapaz. Descobriu ser antigo namoro muitas vezes reatado. “Um qualquer!”, pensou com desprezo. Ele, Joel, embora pobre, tinha família de nome e padrinho importante, político. Melhor partido, sem dúvida. Procurou impressioná-la, carregando o grosso livro de Medicina Legal e abrindo-o escandalosamente no ônibus, nas gravuras anatômicas, quando se sentava perto dela. Deu certo. Namoraram.

Nem por isso se sentiu seguro. A vaidade da conquista não esvaneceu sua insegurança. Começou a atormentá-la com desconfianças. Não podia suportar as brincadeiras dos colegas que, por acaso, os viam juntos: “Garota gostosa! O que ela viu em você?”, ou ainda: “Você não acha que ela precisa de alguém mais homem que você?!”, diziam, num misto de inveja e gozação. Cortou amizades, afastou-se da turma. Do acanhado quarto de república saía apenas para vê-la e frequentar as aulas. Passava horas, solitário, mesclando ciúme, paixão e desejo. Quando juntos, não sabia o que mais doía, se o desejo de posse ou o temor de perdê-la. Submetia-a a verdadeiros interrogatórios: onde foi? a que horas chegou à casa? com quem falou? por que não telefonou? por que chegou atrasada ao encontro? quem era o rapaz para quem a vira olhar? Passou a faltar às aulas, para vigiá-la. Fê-la chorar, algumas vezes.

Porém, havia momentos de trégua: passeavam, trocavam carícias, faziam planos. No escurinho da fila de trás dos cinemas, as carícias foram se tornando mais ousadas. Finalmente, tomou uma decisão: atraiu-a para o seu quartinho na república, num dia de feriado, quando a turma toda saíra para a farra — e possuiu-a. Oh! O seu corpo! As redondezas, a maciez da pele, as carnes firmes, os recantos úmidos, o calor, o ondular instintivo de seus movimentos, levaram-no à loucura! Mas a serpente penetrou no Paraíso. Enquanto Laurinha se recompunha, observou os lençóis: a clássica mancha rubra não estava lá!  Racionalizou: afinal de contas, das aulas no Instituto Médico Legal, sabia que o hímen complacente é mais frequente do que se pensava. O mestre contara estórias de casamentos desfeitos, noivas devolvidas à família por maridos desinformados. Porém ele, Joel, não se incluía entre estes. Abafou a dúvida, tornou-se mais apaixonado e não discutiu, sequer, o assunto com Laurinha.

Semanas se passaram, os encontros mais frequentes, a Faculdade mais esquecida. Laurinha parecia-lhe mais exuberante, amorosa, risonha. Então, tudo recomeçou: descobriu uma foto do antigo namorado em seu caderno de letras de músicas. Acusou-a, frontalmente. As juras de Laurinha não o convenceram — nem as lágrimas, nem sua revolta. Terminaram.

Debatendo-se entre a raiva, a falta, o amor e o desejo, Joel adoeceu. Lembrou-se dos romances antigos que suas irmãs liam e contavam, onde as heroinas morriam do “mal de amor”. Sempre os achara piegas. Agora temia que o mesmo ocorresse com ele. Os colegas da república preocuparam-se e conseguiram avisar a Laurinha.

Acanhada, olhar magoado, a moça não parecia a mesma. Seus olhos fitavam, por breves momentos, os olhos do rapaz — mas havia algo indefinido nesse encontro. Cuidadosa, sentou-se arredia à beira da cama onde, febril, Joel suava. Tocou-lhe a testa ardente e o toque despertou-lhes a ternura latente. Febril como o corpo, o desejo impôs seu comando, lábios sugando, mãos procurando, clímax chegando…

Renasceu. Jurou a si mesmo enterrar o passado, amá-la, sem peias, sem meias-verdades, sem medo, amá-la!

Publicações

  • Sementes Amargas (Garcia Edizioni), 2013 - romance;
  • Mulheres Milenares, 2ª edição (Garcia Edizioni), 2013 - contos;
  • Universo Reverso (Garcia Edizioni), 2013 - romance;
  • XII Antologia de Contos Alberto Renart - Fundação Cuktural Cassiano Ricardo, 2007;
  • Antologia Poética: Poetas e Poemas VII (Litteris Editora), 1996;
  • Antologia Concurso Literário Bahia de Todas as Letras - 4ª edição , 2009.

Contato

coracybessa@gmail.com