Bio
Como idealizadora do Projeto Mutuípe e suas Grandes Mulheres, em 12 de outubro de 2015, escreveu contos a partir dos relatos de histórias de vida de 34 mulheres que residem em Mutuípe.
Produção Literária
Eliete
O fazendeiro Hélio Costa dirige seu fusca azul pelas estradas que o levam à sua fazenda no Córrego. Há dias não chove; a poeira que o fusca levanta atrapalha a visão dos caminhantes que, também, retornam da feira de Mutuípe. Mulheres, com crianças no colo, protegem-se do sol escaldante às sombras das sombrinhas; crianças descalças, com as sandálias nas mãos para não correr o risco de quebrar as tiras; homens montados em jegues que trazem nos panacuns pão e bolacha americana da padaria de Zé Bailão, carne de sertão, Q-suco, manteiga e outros alimentos que a roça não produz. O motorista do fusca reduz a marcha para desviar dos buracos. Buzina, cumprimentando a professora Geralda e seus filhos, Janete e Dilson, que recuam, caindo para dentro do mato; agradecendo e recusando a carona: falta pouco para chegarem. O fusca passa muito perto deles, devagar e sacolejando. Tempo suficiente para Janete ver que, no seu interior, no banco do carona, Hélio Costa leva uma caixa grande, embrulhada em papel de presente. Curiosa, sai do mato, limpa a poeira dos olhos, da roupa e volta a caminhar querendo ser a dona daquele presente mesmo sem saber o que a caixa embala.
A caixa embala um desejo da filha caçula do fazendeiro. Domingo ela faz aniversário. Sete anos. Não tem festa – desejo de toda criança – mas tem este presente que ficará guardado na memória da sua infância por todos os dias de sua vida.
Hélio Costa decide ir para casa no final da tarde – não trazia carnes frescas, nem outro alimento que se estragasse com o mormaço – aproveita o tempo quente para percorrer a fazenda maior, abrir as estufas que secam cacau, conferir o peso das sacas de cacau, dar algumas ordens, reclamar da desordem e fazer contas contabilizando o lucro. Alguém lhe oferece o mel de cacau que escorre no cocho. Ele bebe. Lembra da filha; aquele manjar é a bebida preferida dela. Em instantes o sol se põe, ele precisa entregar o presente.
Quando o fusca azul desce a ladeira, Hélio Costa vê Eliete na sua brincadeira preferida – espantando os espanta-boiadas que, ao pôr do sol, se reúnem à beira do tanque. Ela interrompe a brincadeira e vai abrir a cancela para o fusca passar. O pai ri com a marcha da filha que dá ordens aos vira- latas Robalo, Piaba, Tainha, Bagre e Surubim, cachorros batizados com nomes de peixes para não correrem o risco de contrair a raiva. Os cachorros
obedecem; correm tentando abocanhar os pássaros. Não conseguem; ela grita, encorajando-os. Os espanta-boiadas, em voos rasantes, gritam mais alto, são gritos de alarme, avisando ao bando que fuja da menina caçadora. Ecos dos gritos estridentes dos pássaros, dos gritos de ordem da menina e dos latidos obedientes dos cachorros abafam o barulho do motor do fusca que para em frente à casa. Lá dentro, há gente estranha. A caixa é retirada do banco do carona e, cuidadosamente, guardada no bagageiro, antes que os outros filhos cheguem para descarregar a feira. Encostado ao fusca, o pai fica à espera da menina que ainda não desistiu de perseguir os espanta-boiadas. Quando ela retorna, suada e vencida, atravessa o pasto queixando-se da teimosia dos pássaros. Robalo, Tainha, Piaba, Bagre e Surubim, ainda ofegantes, farejam os pés do fazendeiro e sentam no terreiro para descansar. Pai e filha se abraçam. Ela pergunta o que ele trouxe da feira e ouve:
– Q-suco, um queijo cuia e uma tela colorida para a televisão.
Horas depois, a casa estava cheia de gente. Crianças brincando no terreiro, adultos acomodando-se no chão da pequena sala. O dono da casa abre o capô do fusca, fazendo uma ligação direta entre bateria e televisão. Adapta a tela colorida ao aparelho de televisão preto e branco enquanto a plateia aguarda ser hipnotizada por imagens – agora com três listras coloridas. Um telespectador, que se acomodou do lado de fora da janela, sugere que coloquem um pedaço de bombril na ponta da antena para diminuir os frequentes chuviscos e interferências na imagem da novela Irmãos Coragem.
Eliete e as outras crianças não acompanham o enredo. Preferem brincar de picula, falar da perseguição aos espanta-boiadas, sobre as viagens às grutas de Bom Jesus da Lapa e de Milagres. O pai prometeu levá-la às grutas.
Na tela da televisão que chuvisca, mal dá para ler “a seguir, cenas do próximo capítulo”, anunciando o retorno da plateia às suas casas. Aos poucos, a sala vai se esvaziando; o terreiro é ocupado por mães que chamam seus filhos para ir embora, enquanto dão palpites sobre o próximo capítulo; crianças pedem para ficar mais um pouquinho; homens combinam retornar mais tarde para o adjutório de matar o porco. A plateia, aos poucos, desaparece na escuridão. Suas vozes, também. Dentro de casa, a família se organiza para matar o porco.
Na hora combinada os vizinhos chegam; animados e falantes. As mulheres vão para a cozinha; os homens tomam um gole de cachaça para esquentar o sangue antes de sangrar o animal; ficam eufóricos, contam vantagens. O valente Nil, bom de mira, maior matador de porcos de toda região, conta quantos tiros certeiros já deu na testa de porcos gordos como aquele. Alguém pergunta quantas balas tem na espingarda. Uma, é a resposta.
O porco já pressente o seu fim. Como foi ingênuo; comeu tudo o que lhe deram: jaca, farelo, lavagem, mandioca e fruta-pão. Tiveram até o cuidado de cozinhar bagos de jaca para ele. Comia várias vezes ao dia. Em cada refeição, a ordem: engorde para morrer. Agora está sozinho, acuado. Desejam a sua
morte. Não tem como pular as cercas do chiqueiro, muito menos se disfarçar. Gordo do jeito que os seus donos queriam, ele mal consegue se levantar. Até a menina Eliete ri dele, dizendo que ele está tão gordo que mal consegue abrir os olhos. Menos mal, será mais fácil fechá-los, para sempre, quando estiver frente a frente com o cano da espingarda de cartucho.
O estampido do tiro certeiro foi ouvido pelos vizinhos que não vieram ajudar a matar o porco, mas que torciam pela sua morte e aguardavam as porções de fato, tripas, mocotó, as orelhas, a cabeça, que seriam entregues pelos filhos de Hélio Costa, nas primeiras horas da manhã. Montados em seus cavalos de pau – uma mão segurando a rédea e a outra equilibrando a vasilha – saíam batendo de porta em porta:
– Ô de casa! Seo Menêi, Dona Avina taí? Aqui o fato que mãe mandou.
– Ô de casa! Dona Martila, aqui as tripas que mãe mandou.
O porco agoniza. Ninguém se importa com seus gemidos. Alguém pede a bacia para aparar o sangue do sarapatel, outro pede uma faca mais amolada para dividir a papada em duas. O animal é despostado.
Clareia o dia. Todas as partes do porco foram separadas. Hora de repartir. E partir. Outro adjutório só perto do Natal.
Eliete acorda. Nos pés da cama tem um embrulho. Ela abre. Curiosa, sem pressa, com o coração acelerado. O pai observa pela fresta da porta, vendo a expressão de felicidade da filha ao ganhar o presente que ela mais queria; uma boneca da Estrela – a que passa na propaganda da televisão. Eliete beija, abraça, afaga, sente o cheiro de plástico perfumado. Acaricia os cabelos; levanta a saia do vestido para ver a calcinha; observa os sapatos; retira-os, calça-os outra vez; conta quantos vestidos vieram a mais; inclina o corpo da boneca, ouve um choro. Boquiaberta, sorri. Inclina-o, outra vez; a boneca volta a chorar, ela nina. A boneca dorme. Os irmãos chegam; querem ver o presente. Elite pede silêncio; a boneca está dormindo.
A chegada da boneca da Estrela muda a rotina da menina. As duas pegam no sono, juntas, agarradinhas. De manhã, Eliete vai estudar no prédio do Córrego. Já sabe fazer o ABC, apressou-se em aprender em casa, observando os irmãos fazendo o dever de casa. Temia ficar de castigo ou tomar bolo por não saber a lição. A boneca fica em casa, sentada na mesma posição, encostada na cabeceira da cama. Eliete copia o dever do quadro-negro pensando na boneca. No caminho de volta para casa, Robalo, Piaba, Tainha, Bagre e Surubim vêm encontrá-la, abanando os rabos e latindo de alegria; ela retribui a recepção com pouco entusiasmo; está concentrada, matutando, decidida a batizar a boneca na gruta de Milagres.
Enquanto Eliete cuida e dedica amor incondicional à boneca da Estrela, os vira-latas assistem, a mais um pôr do sol, sentados no terreiro. A menina não chega para dar ordens de perseguição aos espanta-boiadas que,
tranquilamente, voam e bebem a água do tanque. Robalo late, avisando que os pássaros intrusos chegaram. Piaba e Bagre latem mais alto, inconformados com a ocupação. Tudo em vão. A menina conversa com a boneca sobre a viagem e o batizado. O sol se põe; os pássaros se recolhem.
Chega o dia da romaria. Lá vai a boneca da Estrela acomodada dentro da mala, trancada com cadeado. A primeira parada é na gruta de Milagres. A boneca sai da mala para ser batizada. Maria Clélia, a mãe de Eliete, é a madrinha. O batismo acontece; mãe e filha agora são comadres. A boneca bebe a água do milagre e volta a ser trancada na mala; Eliete já ouviu muitos casos de crianças que são roubadas nas romarias ou que se perdem fazendo o passeio da gruta. Ao passar pela sala dos ex-votos ela tem certeza de que fez bem em deixar a boneca no hotel. A escuridão da gruta reforça essa certeza. O guia alerta para que na escuridão, todos andem “um atrás do outro para não se perder”. Elite sente frio, pânico, calor e medo. Temerosa e atenta, suando frio e quente, demora-se pouco observando as formações de estalactites clareadas pelas chamas das velas que os romeiros seguram. A borra quente e derretida lhe queima a mão. Ela suporta a dor, segura firme a vela acessa: não pode se perder.
Protegida na mala com cadeado, a boneca chega a Bom Jesus da Lapa. Não vai à missa, nem ao passeio de barco no imenso Rio São Francisco. Na foto do monóculo tirada para guardar de lembrança da viagem, a boneca da Estrela não aparece. Eliete está abraçada à boneca do cenário do fotógrafo lambe-lambe.
Eliete e a boneca da Estrela fazem a viagem de volta a Mutuípe contando e comendo as contas do colar de licuri. Vivem juntas por muito tempo. Só se separam mais de trinta anos depois, quando Eliete a dá de presente a Lalique, sua única sobrinha.
Janete, a filha da professora Geralda, assim como as outras amigas de Eliete, nunca brincou com as intocáveis bonecas da Estrela que apareceram no Córrego: a de Eliete e a da propaganda da televisão.
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