Bio
João Figuer é graduado em Direção Teatral pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) com especialização em educação pela FAMETTIG e é aluno especial do Mestrado em Artes Cênicas da UFBA. É ator, diretor de teatro, poeta e agitador cultural. Desenvolve trabalhos com arte-educação e edita o blog A Arte de Não Dizer Quase Tudo. A aproximação com a escrita veio cedo para o autor, que desde muito jovem começou a ler as composições do “poetinha” Vinicius de Moraes. Dentre as influências no estilo e na forma de trabalho, destacam-se, dentre outras, a poesia de Fernando Pessoa, Manuel Bandeira e revela a admiração pelos escritores Jorge Luís Borges, Albert Camus e Guy de Maupassant. Figuer ministra oficinas de teatro para jovens e adultos e realiza ainda paralelamente apresentações de teatro corporativo em empresas. Defende um projeto de teatro voltado para a terceira idade há 20 anos e, é o diretor do espetáculo “Sou transformista, mereço respeito”, que esteve em cartaz no Theatro XVIII, Espaço Xisto, Teagro Gregório de Mattos e vem circulando por cidades do interior como Maragogipe, Lauro de Freitas e Camaçari, após sucesso de público e crítica. Com a boa repercussão do lançamento do seu livro, criou um espetáculo teatral com as poesias publicadas, gerando o monólogo “Uma Pitada de Sarau” que esteve em cartaz nos meses de março e junho de 2012, voltando em cartaz no mês de setembro de 2013 no Teatro Gamboa Nova. Além dessas temporadas vem apresentando o seu sarau em bibliotecas e escolas de Salvador, sempre de forma independente e fez um lançamento do se livro na cidade natal do poeta Castro Alves, Cabaceiras do Paraguaçu. João Figuer costuma recitar suas poesias em saraus, como os realizados no Instituto Cultural Brasil Alemanha, no Atelier da Alma, Biblioteca Pública Thales de Azevedo, SESI Itapagipe, colégios e teatros da Bahia. Em 2013 ministrou a Oficina de Poesia e Criação Literária na Biblioteca Pública Thales de Azevedo e em 2014 criou a Oficina ‘A Arte de Dizer Poemas’, voltada principalmente à comunidade estudantil e outros poetas, dando a oportunidade de conhecer aspectos da interpretação de poemas. Em 18 de agosto de 2012 o livro “De amor, desamor e uma pitada de sal”, foi lançado na Bienal Internacional do Livro de São Paulo.
Produção Literária
Judicéia
Judicéia colocou a saia dourada por cima da calcinha amarela, para atrair prosperidade. Não teve dúvidas sobre a cor da blusa, deveria ser branca, como as flores que carregava para enfeitar a mesa do jantar. Tinha discutido com o marido horas antes. Fuçou o celular e leu uma mensagem de uma tal Rosália dizendo “vem ser feliz no meu ano novo”. Quem era essa abusada? Ficou bastante irritada, mas ainda assim preparou o jantar da virada com capricho. Colocou a mesa à porta de casa, de onde se podia avistar a baía, e convidou os vizinhos e amigos. Bebeu tanta sidra que passou da conta. Logo depois da contagem regressiva, quis mostrar a calcinha amarela para o vizinho candidato a vereador. Levou um tabefe do marido e foi chorar no quarto. A salada de maionese azedou, mas o salpicão de frango estava realmente uma delícia.
Veracilda
Veracilda abriu a janela, deu bom dia ao novo ano, tomou um café preto, vestiu sua melhor roupa e saiu para trabalhar. Antes de fechar a porta de casa, fez uma oração rápida pensando na conta de luz que vence no dia 2. Como está difícil pagar as contas, não nos deixei cair em tentação, amanhã vence o cartão de crédito, mas livrai-nos do mal, darei um jeito nisso, amém. No caminho até a estação Anhagabaú do metrô, ouviu duas vezes “gostosa” e uma vez “mata o papai”. Já estava acostumada. Os homens, quando querem, costumam ser uns imbecis. Já nem se importava. E ao fim e ao cabo era um jeito tosco de agradar. Lembrou que no almoço da firma, a quinta-feira era dia de feijoada, salivou tanto que quase engasgou.
Rosedalva
Rosedalva acordou no terceiro dia do ano mais disposta que o habitual. Janeiro é um mês de calor senegalês na cidade do Salvador, mesmo encharcada de suor, saiu à janela sem perceber que estava seminua. Tudo que desejava era um banho, mas a sirene estridente não parava de tocar. Foi até o portão e um homem baixinho entregou-lhe um envelope, não sem antes dar uma olhada geral no corpo da mulher, assentindo com um sorriso. Dentro do envelope havia três cédulas de 100 reais e um bilhete tão breve quanto um lampejo. Case-se comigo, sou louco pela senhora, enquanto não disser sim, trarei todos os dias um envelope como esse ou morrerei. Riu do trágico bilhete do pequeno homem e preferiu dizer não como resposta. Em apenas um mês teria uma pequena fortuna. Esperou ansiosa o dia seguinte, o homem não veio, nem no outro, nem no outro nem nunca mais. A onda de calor andava matando naqueles dias.
Brunésia
Brunésia acreditava em anjos e comia doces como se o mundo fosse acabar no dia seguinte. Todas as tardes, após a leitura do horóscopo e a reprise da novela, gostava de deitar-se distraidamente e imaginar, passo a passo, a chegada de um príncipe robusto que a tomava pelas mãos, dizia meia dúzia de palavras em outra língua e a levava dali para sempre, jurando uma vida melhor. Estava farta de esperar por um emprego novo, amigos sinceros, uma lufada de vento ou o afago de um desconhecido. Muitas vezes pensou em desistir, quedar-se nua para sempre naquele sofá, esperando o soar das trombetas, mas desistia ao lembrar que ainda não tinha terminado o pulôver de crochê.
Alanildes
Alanildes não conseguiu pregar o olho. Virou de um lado ao outro da cama a noite inteira. Tomou cinco comprimidos de um placebo cor de rosa para ver se o mundo mudava de cor, mas tudo ao redor continuava tão cinza quanto antes. Talvez mais cinza quanto mais o tempo passasse. Ficou ali imaginando que poderia criar asas imensas, viu o sol nascer e lamber com uma luz desigual suas pernas, a cama, a parede. Há dias escutava uma canção que dizia algo sobre estar sozinha no mundo. Não havia ninguém para escutar junto. Deixou que as asas imaginárias crescessem por trás de si e atirou-se pela janela. Era o primeiro domingo de janeiro e, as pessoas que passeavam no parque, acharam a coisa mais linda do mundo o voo trágico daquela mulher.
Lurdeslane
Lurdeslane era incorrigível, mal tinha alcançado os dezesseis anos naquele dia seis e só pensava em casar-se de véu e grinalda na igreja Matriz de Ouro Preto. Sua mãe tinha contraído matrimônio aos quatorze, sua tia aos quinze, sua avó aos doze e a mocinha já se sentia uma velha, temendo chegar aos dezoito, sem ainda ter beijado uma boca. Desde sempre se viu cercada por mulheres, em casa, no internato, até mesmo na rua onde morava. Para passar o tempo, gostava de deitar-se nua sobre a mesa da cozinha, enquanto todas estavam fora, e imaginava-se uma leitoa assada. Cobria-se então com orégano, folhas de louro, pimenta calabresa, cominho, hortelã seca, açafrão, mas ficava pururuca da vida quando esquecia a noz moscada.
Saratiene
Saratiene estava sentada há horas diante da janela. Movimentos mínimos indicavam que havia um mistério no ar. Era o sétimo dia daquele janeiro insano e a pequena arfava, sem vestes, como se esperasse um acontecimento fatal. Sete era o seu número de sorte, multiplicado por mais sete eram os seus pecados. A mulher teimava em deixar-se dominar pelas paixões mais lúbricas e, ao longo do nascente ano, já tinha colecionado um amante por dia. De todos os tipos: alto, baixo, gordo, magro, sujo, fresco e o que estava por vir, o engomado. Estava exausta e enfadada. Há sete anos repetia o mesmo ritual. Hospedava-se naquele mesmo hotel vagabundo do Recife Antigo e recebia os anônimos que ia chamando pela janela. Sabia que aquele homem que estava subindo era o sétimo e derradeiro de todos. Depois dali voltaria à sua vida pacata de professora de bons modos.
Odília
Odília chorou com a carta nas mãos. Foi mais um choro de resignação que de sofrimento. Havia ali, naquele instante, uma resolução da incerteza sobre aquele amor breve e fingido, o fim da aventura para o relacionamento trôpego que começara oito dias antes, na noite de réveillon e, que terminava ali, na textura daquele papel, numa quarta-feira de sol. O desconhecido que a arrebatara veio com o champanhe numa taça vermelha, pouco antes da meia noite, a convidou para dançar bem na ascensão dos fogos, nem deu chance para que pudesse dizer sim ou não. A música de Cole Porter parecia perfeita para aquele momento. Em oito dias fora somente o que fizeram. Dançaram do chão ao teto, rodopiaram sob os lençóis e incendiaram seus corpos naquele quarto vagabundo de hotel. Até que o mensageiro trouxe-lhe a carta. Deixe meu homem em paz, ele é casado, pai de oito filhos, suma das nossas vidas. Ela estava de partida para a sua cidade natal, banho tomado, malas feitas, passagem comprada. Antes de ir-se, deixou outra carta na recepção e pediu que fosse enviada à remetente. Paz se escreve com z, minha senhora, sinceramente. O.
Carmenilde
Carmenilde era a única fêmea no meio daquela prole de varões. Nasceram quatro meninos, em seguida veio ela, depois vieram mais quatro. Todos machos. Era curioso ver no quintal da casa, naquele varal de cuecas molhadas uma calcinha ou outra cor da pele, quase sempre pendurada no centro, como se por segurança, ladeada pela roupa íntima dos seus algozes. Sim, pois era isso o que eram os oito irmãos da moça, uns algozes cruéis. Ela não podia sequer olhar para os lados, suspirar um pouco mais profundo ou desviar-se do caminho. Os irmãos a mantinham sob vigilância cerrada. Até que uma noite, um nove de janeiro pacato, uma quinta-feira quase esquecida no tempo, os irmãos saíram para pescar e encontraram a moça nua, caída na beira do rio Araguaia, serena como um peixe estrela. Correram até lá, certos de que a encontrariam morta. Chegaram bem próximos e antes que a pudessem segurar, ela abriu os olhos, sorriu um riso tímido, mas determinado e jogou-se nas águas mornas do rio. Nunca mais se ouviu falar dela, mas dizem que nadou e caminhou noite e dia até alcançar o mar. Hoje vive sob as águas profundas do oceano, cercada por submissos tritões.
Dorinalda
Dorinalda estava hospedada, há dias, naquele quarto simples de pensão, desde que, finalmente, decidira sair de casa, na noite de réveillon, fugindo da vidinha ordinária que levava. Antes mesmo do apresentador da TV terminar a contagem regressiva, já alcançava a esquina de casa sem sequer olhar para trás. Agora, ali, diante da janela, uma pequena aflição atingiu-a de cheio, poderia ir para qualquer lugar do mundo, fazer tudo o que desse vontade, já tinha deixado no passado aquele marido glutão com disfunção erétil. Foram anos aguentando calada os comentários tolos sobre o futebol, os pedidos de mais uma cerveja, sempre as da parte de cima da geladeira, pois as de baixo não estão suficientemente geladas, fora o ronco estridente no calor da noite. Podia comprar uma passagem para o Nepal, sentar à sombra das mangueiras em Belém, visitar a tia que morava em Maceió e não via há uma década, mas estava ali, nua, com uma toalha branca nas mãos sem saber exatamente o que fazer com algo que nunca teve: liberdade.
Genecira
Genecira não tinha esperança por dias melhores. O ano nem bem começara e já se sentia cansada, desprovida de graça e um tanto desencorajada pela vida. O calor também não ajudava muito, até que um dia apareceu um estranho na porta da sua casa vendendo um elixir que prometia milagres. Curava bronquite, colesterol alto, sinusite, inflamação no útero, pressão alta, gastrite e mal de amor. Ouviu aquilo tudo sem prestar muita atenção, olhava apenas as mãos do homem, fortes, calejadas, masculinas. O senhor é casado? Sou não. O senhor é natural de onde? Rio de Contas. Quer entrar? Para quê? Para deixar o tempo passar… O diálogo acabou ali. Nunca tomara do tal elixir, o homem também não, sabiam que de nada adiantava, mas acreditavam na última coisa que prometia e fizeram disso um milagre particular.
Ruthênia
Ruthênia passou metade da vida se preocupando com a vida dos outros. O que faziam, o que deixavam de fazer, quem levavam para a cama, o que comiam, vestiam, a quem imploravam. Nem era, definitivamente, culpa sua tanta preocupação com o alheio. Era um hábito conquistado, que veio da avó, da mãe e a alcançara. Naquela décima tarde de domingo, de um janeiro esquisito, já que fazia frio, decidiu parar de se importar com os outros. Descobriu que o fardo dos anos se aproximava e pouco sabia de si, menos ainda do mundo e o pior de todas as descobertas: Não interessava a ninguém. Foi assim que, desse momento em diante, olhou fundo no espelho e passou a cultivar begônias no quintal.
Edyara
Edyara não suportava as segundas-feiras, tinha um pavor compreensível de baratas, morria de medo de carro e de panela de pressão. Foi criada assim, para ter medo de tudo quase. Quando pequena em Sorocaba, caiu do berço três vezes, foi mordida por um cachorro sarnento e teve rubéola. Tentou ser professora primária, mas as crianças arrancaram seus cabelos no primeiro dia de aula. Foi secretária bilíngue, mas tropeçava no inglês, vendedora de cosméticos falsificados, quase acabou presa. Descolou um serviço como garçonete. Em sua primeira tarde de trabalho, deixou cair a bandeja e esbarrou no bufê. Foi chamada de incompetente pelas colegas. Perdeu as estribeiras e ficou nua. Desfilou pelo salão com tão pouca desenvoltura que cativou a compaixão do gerente. Casou-se com ele e emprestou seu nome a um sanduíche de pernil.
Evangivalda
Evangivalda morava sozinha desde os quatorze anos de idade. Foi quando seus pais se separaram, cada um foi para um lado e a menina foi entregue à própria sorte. Passou a detestar o número 14. Evitava tudo que pudesse se relacionar com esse algarismo. Tinha muitas manias, todas as portas da sua casa, malas e gavetas eram trancadas com cadeados numerados. Resolveu um dia contá-los, 11, 12, 13 e… encontrou um número a mais. Decidiu então jogar uma mala fora. Nem escolheu direito. Foi à beira do rio e atirou a maleta escura com o cadeado, sem número, na correnteza. Respirou fundo. Era nesta que estavam seus documentos, algumas joias e a certidão da casa onde morava. Voltou sem saber disso. Na esquina, desatenta, em frente da casa de número quatorze, uma fatalidade: foi atropelada bruscamente pelo caminhão de lixo, placa 5432.
Verbena
Verbena nasceu homem em 15 de janeiro de 1972. Até os sete anos de idade foi criada como tal. Aos quatorze, decidiu que seria uma moça. Vestiu calcinha, saia, blusa, sutiã e ajeitou os cabelos. Apanhou um bocado, na verdade, apanhou muito. Dia sim, dia não. Aos vinte e um anos, cansada de tudo, foi à luta e exigiu respeito. Entrou para a faculdade e tornou-se médica. Doutor Emerson, mais conhecido como “aquela doutora”. Aos vinte e oito, foi para a Tailândia e fez a cirurgia de redesignação sexual. Aos trinta e cinco, casou-se com um militar sensível e apaixonado, que chora assistindo final de novelas e faz cafuné em sua cabeça para que adormeça. Hoje, no aniversário de quarenta e dois, pensa em adotar um menino e ir morar numa casa em Arembepe.
Publicações
- Participação no livro Um dia na cidade, organizado por Nalini Vasconcelos, 2014 – conto;
- De amor, desamor e uma pitada de sal (Editora Scortecci), 2011 – poesias.