Bio
Jornalista, atua como editor de texto na TV Subaé, afiliada da Rede Globo em Feira de Santana, desde 1992; foi editor da revista cultural Usina – Fábrica de Ideias, lançada em 6 edições pelo programa FazCultura na década de 1990; produtor e diretor do videodocumentário A Volta do Bando Anunciador, lançado pela Universidade Estadual de Feira de Santana em 2008; tem publicado os livros: Piolhos-de-cobra (Editora Scortecci, XI Prêmio Literário Livraria Asabeça 2012 – categoria contos, 2013); Jeremias Ladrão-de-cavalo, livro de contos publicado pelo Museu de Arte Contemporânea de Feira de Santana, em 2014; minimalismo, livro de microcontos publicado pela editora alternativa Arribaçã, em 2015; e iluminária, livro de microcontos publicado pela editora alternativa Arribaçã, em 2016. É autor de dois romances inéditos: Lampião e Deus-te-guie – O encantamento de um cangaceiro chinfrim, e Memórias de um possível vencedor, e de mais dois livros de contos, também inéditos: Histórias cruéis da infância e Contos fantásticos, além de inúmeros contos e microcontos avulsos.
Produção Literária
Hemorragia
Bem que ela tivera um pressentimento ruim na noite anterior. Logo pela manhã, a filha de quinze anos percebeu que algo extraordinário estava para acontecer. Correu e avisou à mãe que a torneira do quintal estava gotejando sangue. Ela foi verificar e constatou que uma gota vermelha pingava a cada cinco minutos. Assustada, apertou o máximo que pôde a torneira. A gota de sangue passou a cair a cada quinze minutos. Arranjou um pedaço de pano e apertou ainda mais a torneira. O sangue foi estancado, mas o esforço lhe provocou um grande desgaste físico, e foi obrigada a voltar para o quarto. Deitou-se, sentindo calafrios. Meia hora depois foi acordada pela filha. Outra torneira gotejava sangue. Desta a vez a da lavanderia. Levantou-se e adotou a mesma providência aplicada à torneira do quintal. O sangue foi estancado. Tornou a deitar-se, sentindo mais calafrios. Sonhou que o marido a arrastava em meio a uma multidão e a obrigava a subir num cadafalso, para executá-lo, ele próprio, na guilhotina. Acordou no momento exato da precipitação da lâmina. A filha a chamava de novo, para avisá-la de outra torneira gotejando sangue. A da pia do sanitário. Correu e aplicou-lhe um torniquete. Começava a sentir-se exausta. Mesmo assim foi verificar as torneiras do quintal e da lavanderia. Percebeu que, apesar dos apertos que lhes aplicara, começava a formar-se, em cada uma delas, uma quase imperceptível gota vermelha. Enrolou as três torneiras com pedaços de plástico. Depois saiu examinando uma por uma as demais torneiras da casa. Abriu cada uma delas e verificou, satisfeita, que jorravam água. Tranqüilizou-se um pouco e voltou para o quarto. A filha comentou que ela estava bastante pálida. Olhou-se no espelho e concordou com a filha. Sentiu as pernas fraquejarem e sentou-se na cama. Perguntou à filha se o marido dera notícia. Ela disse que há três dias não telefonava. Sorriu, conformada. Deitou-se e cobriu-se com o cobertor, recomendando à filha que a deixasse descansar. A filha saiu para vistoriar as torneiras da casa. Descobriu que a da pia da cozinha também já pingava sangue, e que os invólucros de plástico das outras torneiras, colocadas pela mãe, haviam se transformado em três bexigas cheias de sangue. Correu para o sanitário e constatou que também do chuveiro começava a cair uma gota de sangue. Ficou perplexa. Não tinha a mesma desenvoltura da mãe para resolver os problemas da casa. Mas não quis acordá-la. Pensou em chamar um encanador, mas foi surpreendida pelo grito da mãe. Correu para o quarto. A mãe despertava de um pesadelo. Contou que, no sonho, o marido era um garoto malvado, que lhe arrancava a dentadas o mamilo do seio, durante a amamentação. A filha a observou, compadecida. A mãe envelhecera antes do tempo. Uma vida inteira dedicada exclusivamente ao cotidiano do lar. Olhou assustada a brancura dos seus lábios. Resolveu chamar um médico e um encanador. Ajudou a mãe a deitar-se, cobriu-a com um cobertor e voltou aflita para a sala. Antes de telefonar, decidiu verificar de novo como estava a torneira da cozinha. Abriu-a e não conteve um grito de espanto ao constatar estarrecida que jorrava sangue. Fechou a torneira e correu para o telefone. Ligou antes para o médico, mas quem primeiro chegou foi o encanador. Enquanto o sistema hidráulico da casa era analisado, prestava assistência à mãe. Ela estava delirando. Balbuciava palavras desconexas: “Esquecimento”, “Distância”, “Torneiras”, “Alma”, “Conformação”, “Desconformação”, “Sono”, “Sonhos”, “Muros”, “Quintal”, “Formatura”, “Luar”, “Lar”, “Detergente”, “Adstringente”, “Separação”, “Hegemonia”, “Hemorragia”, “Aborto”, “Menstruação”, “”Desespero”, “Compaixão”, “Saudade”, “Esperança”, “Solidão”. O encanador gritou da sala que era impossível estancar o vasamento, pois todas as torneiras estavam danificadas, e todo o encanamento hidráulico da casa estava perfurado. O sangue, segundo ele, já se espalhava no subsolo do lar. Era algo irreversível. O médico chegou. Examinou os olhos da mãe e diagnosticou anemia profunda. Ela estava inconsciente. O encanador avisou que para estancar o sangue haveria de cavar o chão, para descobrir e tapar o local exato do vasamento. Neste momento a mãe teve um lapso de lucidez, e desautorizou a escavação, alegando que não permitiria tal invasão à mais íntima privacidade de seu lar. O médico aproveitou a oportunidade para lhe perguntar se havia comido algo que fugisse de sua dieta normal. A mãe pronunciou suas palavras finais: “Nada, nunca comi nada que fugisse de uma dieta normal”. A filha estava impressionada com o desdobrar dos acontecimentos. Telefonou para o pai. Ele precisava vir, com urgência. O encanador disse que a hemorragia da casa estava fora de qualquer controle. O médico apertava o braço da mãe na busca insistente de uma veia para injetar-lhe soro. A mãe não mais respondia a qualquer estímulo. As bexigas da torneiras se haviam rompido, e o sangue gotejava ininterruptamente na cozinha, no sanitário e na lavanderia. O líquido vermelho começava a se espalhar pela casa, e entrava no ralo do quintal para escorrer pelo cano e aparecer do lado de fora, correndo rente à calçada por toda a rua. Chamou a atenção dos passantes e da vizinhança. Formava-se, por causa disto, uma aglomeração de gente diante da casa. E ninguém pôde evitar o surgimento dos cães, que lambiam a enxurrada de sangue ao longo de toda a sarjeta. A filha prostrou-se na poltrona, num sinal de que mais nada podia fazer. O encanador sentou-se ao seu lado, e o médico lamentou que o melhor seria chamar um padre para providenciar a extrema-unção. A torneira da cozinha estourou, e de longe podia-se ouvir o barulho do jorro de sangue. A mãe era uma estátua de gesso em cima da cama. O marido chegou, abrindo caminho entre a multidão. Mas já era tarde. A casa toda sangrava, enquanto a mãe, sem um pingo de sangue, dava o suspiro final.
Redenção
Avistei-o de longe, da porta que dava acesso ao amplo salão no interior do bar. O aparelho de som tocava alguma coisa de Tom Jobim. O dono do estabelecimento distraia-se detrás de uma antiga caixa registradora, folheando com avidez um velho e surrado catecismo do Carlos Zéfiro. Assustou-se ao perceber minha presença. Pedi uma dose de cachaça, acendi um cigarro, e depois de beber um gole e dar duas longas tragadas observando o movimento da rua, voltei-me para a entrada do salão, que ficava separado do mundo de fora apenas por uma cortina de pano amarelado e seboso. O velho estava lá, tomando uma cerveja e olhando em minha direção. Reconheci-o com facilidade, mesmo com o salão estando com as lâmpadas apagadas. A luz do sol penetrava por uma porta ao lado, que dava acesso aos quartos que ficavam no quintal, e incidia diretamente sobre ele, iluminando sua face esquerda e fazendo brilhar os cabelos grisalhos e revoltos que emolduravam seu rosto arredondado e de bochechas flácidas. Aquele velho me odiava. Mas naquele momento não podia me reconhecer. Em pé na porta do salão, com a cortina afastada para um lado, eu era apenas uma silhueta negra recortada pela luz do sol que vinha da rua, do lado de fora do bar, onde fervilhava o comércio barulhento e desordenado dos camelôs. Sabia que me olhava. Olhava-me com aqueles olhos esverdeados, que um dia, muito tempo atrás, haviam encantado minha irmã. Tornaram-se, com o passar do tempo, sombrios, aqueles olhos esverdeados. Havia pelo menos dez anos que não nos encontrávamos. Há quinze anos sentara ao meu lado em um banco da praça, depois de rondar-me à distância como um náufrago que procura aproximar-se desesperadamente de uma tábua em alto-mar, tentando vencer a resistência das ondas formadas por sua própria covardia e indecisão. Era uma noite fria de inverno, a praça estava semi-deserta, apenas dois ou três casais de namorados se refugiavam embaixo dos bambuzais. O velho, que ainda não era velho na ocasião, mas um homem em plena maturidade, sentou-se ao lado daquele adolescente imberbe, que o tinha quase como a um pai. Antes de dirigir-me ao bar, fiz uma última e tardia visita à minha irmã. Reencontro fugaz, de despedida final, depois de tantos anos de distanciamento e renegada cumplicidade. A mesma empáfia de sempre, o mesmo jeito autoritário e sufocador. A mesma aura sem brilho de corroída aristocracia emprestada. Cadê o velho? – perguntei. Por aí, tentando se enganar. Olhei em volta. Havia na casa uma atmosfera de velhos bons tempos que não voltam mais. Uma poeira de passado festivo, embalado ao som de bossa nova, parecia impregnar todos os móveis e paredes da casa, e me dava vontade de espirrar. E de vomitar. Pedi outra dose de cachaça. A música de Tom Jobim, dentro do bar, misturava-se aos sons de Psirico e Calcinha Preta, que vinham das bancas de camelôs do outro lado da rua. Perguntei ao dono do bar quem era o homem que estava sozinho no salão. É gente distinta, de família tradicional. Entraram no bar duas mulheres com os vestidos muito curtos, os rostos besuntados de maquiagem, e pediram duas doses de conhaque. Foram rapidamente até a entrada do salão, entreabriram a cortina sebosa, voltaram felizes ao balcão, beberam as doses em um só gole, estalaram a língua e deram gargalhadas. A seguir, avisaram ao dono do bar que retornariam logo mais, e saíram rapidamente, sem pagar a conta. Vem sempre aqui? – perguntei. Quem, essas raparigas? – Não, o velho que está no salão. O homem pegou os copos deixados pelas mulheres, colocou-os na pia e voltou-se para mim. Vem aqui todas as segundas-feiras, sempre neste horário, quando não tem ninguém. Traz um disco de casa e pede para colocar estas músicas insuportáveis. O velho, quando ainda não era velho, sentou-se ao meu lado. Não conseguia me olhar. Parecia querer desculpar-se por tudo que eu testemunhava na sua vida de duas faces com minha irmã. Depois de alguns minutos em silêncio, falou com a voz embargada: Não é verdade o que ela lhe conta. Ela é que me faz ser assim. Falava sobre algo que imaginava ser do meu conhecimento, mas que nunca houvera sido tratado comigo por minha irmã, nas conversas em voz baixa que tínhamos na varanda da sua casa. Tratávamos, na verdade, das desavenças entre nossos irmãos, por causa da complicada partilha de uns poucos bens que em breve seríamos obrigados a disputar. Eram conselhos, apelos e instruções que ela dava ao irmão mais jovem, que sempre procurava refúgio no seu lar. Pedi outra dose de cachaça. Era meu último dia na minha terra natal. Partiria de volta para bem longe, para sempre, levando a mísera parte que me coubera no espólio estilhaçado. A velha – sim, também ela estava velha – recebera-me com a frieza de quem não possui mais falsos encantos para ostentar, nem apelos, conselhos ou novas instruções para dar, nem bens familiares para compartilhar. Havia muito tempo acabaram as rodas de bossa-nova na luxuosa sala de visita, onde circulavam, entre os convidados especiais, garrafas de champanhe e de uísques caros, e pairava um clima de afetada harmonia conjugal. Restaram as desilusões sociais, os desarranjos matrimoniais, as explosões matriarcais, as ordens e caprichos cumpridos servilmente pelo marido finalmente subjugado, mas que ainda tinha o sobrenome emoldurado e pendurado na parede da sala de estar. Há quanto tempo? – perguntou o cunhado neófito e embasbacado. Pelo menos quatro anos, respondeu o homem maduro, com a voz embargada. Resolvi pedir uma cerveja. Sentei-me a uma mesa próxima à porta que dava para a rua. Servia de linha divisória entre as duas ondas sonoras que se chocavam no ambiente: vindo de dentro do bar, propagava-se suavemente Eu sei que vou te amar, por toda a minha eu vou te amar; vindo do outro lado da rua, rebentava aos meus pés Você não vale nada mas eu gosto de você, tudo o que eu queria era saber porquê. A velha falou em perdão. Em compreensão. Ele virou-me as costas, argumentei. Lembrava-me do episódio: dias depois da confissão, o velho, que ainda não era um velho, recusou-me um cumprimento. Envergonhava-se, odiava-se, odiava-me. Passou a repudiar o seu confessor, a quem pretendera apenas justificar-se por uma fraqueza de alcova, por intimidades que julgava equivocadamente serem do conhecimento do interlocutor surpreendido. Com outras eu conseguiria, afirmou, respirando fundo e olhando para o céu. Já tentou? Não, não havia tentado. Não tenho coragem. Eu e minha irmã nos abraçamos pela última vez. Um abraço frio, burocrático. Procure ele, deve estar naquele bar. Ela sabia de tudo, mas fazia de conta que não. Era, certamente, uma forma de redimir-se. Tomei um gole de cerveja e sorri, lembrando-me de A curta e feliz existência de Francis Macomber, de Ernest Hemingway. Ainda não havia terminado a cerveja, quando as duas mulheres besuntadas de vermelho e roxo chegaram trazendo uma garota enfeitada para o sacrifício. Não devia ter mais de treze anos. Estava tão besuntada quanto as outras, e tinha uma expressão de espanto. Dirigiram-se diretamente ao balcão, sem me olhar. Trocaram algumas palavras com o dono do bar, entraram no salão, puxando a menina, e cinco minutos depois retornaram, sem a garota. Voltaremos daqui a meia hora, falaram para o homem, e se retiraram. Tomei o último gole da cerveja. Levantei-me e fui até a entrada do salão. Entreabri a cortina. O velho não estava mais lá. Virei-me e percebi que o dono do bar me olhava. Não dissemos nada um para o outro. Apenas paguei a conta. Dali iria direto para a rodoviária. Quando saí do bar, achei que talvez o velho já não me odiasse mais.
Bala por chocolate
Lembrou-se que no quartinho dos fundos, onde eram jogados os trastes e as bugigangas da família, havia visto um pequeno saco plástico contendo alguns cartuchos de revólver calibre 38. Estavam escondidos no alto de uma prateleira de ferro, detrás de umas panelas de pressão inutilizadas. Não sabia quem o havia colocado ali, se sua mãe ou o seu pai. Descobrira-o por acaso, havia cerca de um ano, ao esconder no mesmo lugar umas moedas que o pai deixara cair embaixo da cama, quando trocava de calça. Por todo aquele tempo, os cartuchos não lhe haviam despertado nenhum interesse, pois não via qualquer possibilidade de usá-los em suas brincadeiras. Que graça teria em brincar com cartuchos de revólver calibre 38? Que graça teria, hein?
Sabia que o pai possuía um revólver 38, pois já o tinha visto escondido em cima do guarda-roupa. Era um revólver branco, grande e pesado, que ele segurou com as duas mãos e ainda tentou apertar o gatilho, mas não conseguiu. Colocou a arma de volta ao lugar, com um estremecimento de carinho e de medo.
Afora este episódio, só soubera de que havia uma arma em casa durante uma das frequentes brigas entre os pais. No calor de uma violenta discussão, em que procurara o banheiro para se esconder, ouviu a mãe gritar: Você é que nem esta arma inútil que esconde em cima do guarda-roupa: não tem bala na agulha! Não entendeu o que a mãe quis dizer com isto, mas achou que houvera sido uma agressão muito forte, pois imediatamente o pai se calou. A mãe também se calou. E minutos depois o pai saiu, para só retornar bem tarde da noite, completamente bêbado.
Lembrou-se dos cartuchos quando foi procurado por Adão, um menino de sua idade que havia conhecido na escola, e com o qual iniciava uma camaradagem. Adão queria comprar chocolates, mas não tinha dinheiro. Ele disse que também não tinha, e que há muito tempo os pais não lhe davam nenhum trocado para comprar sequer um pirulito. Passaram um bom tempo calados, ele xingando os pais em pensamento, Adão olhando para o céu, as mãos na cintura, os olhos semicerrados. Só se a gente conseguisse alguma coisa pra vender, disse Adão. Ele contraiu os lábios e ficou olhando para o amigo, esperando que encontrasse a solução. O diabo é que lá em casa não tem nada que sirva pra vender. Ninguém vai querer comprar roupa velha, sapato velho, cadeira velha…
– Lá em casa tem umas balas – ele disse.
Adão olhou-o, sem entender.
– Umas balas de revólver.
– Bala de revólver? Revólver de verdade?
Ele assentiu com a cabeça:
– O trinta e oito de meu pai.
Adão deu um soco no ar:
– Bala tem quem compre!
Adão ficou esperando na praça, brincando na escorregadeira. Ele foi em casa, ainda sem saber exatamente o que estava fazendo. Rumou direto para o quartinho dos fundos, colocou a cadeira próxima à prateleira, subiu, vasculhou por trás de uma panela de pressão. Ainda estava lá. Pegou o saquinho, sentiu-o pesado. Desceu da cadeira, ouvindo os cartuchos tilintarem. Escondeu-o por dentro da camisa e saiu pelo oitão, sem ser visto por ninguém. Quando chegou à praça, sentou ao lado de Adão. Abriu o saquinho e contaram oito cartuchos. Adão ficou encantado:
– É grande. Isto mata um elefante.
– É isto tudo que entra na pessoa? – ele perguntou.
– Não, seu idiota. Só esta parte de chumbo. Esta parte amarela fica presa no revólver, depois que a bala sai. Depois eles jogam fora. É a casca da bala.
Ele admirou-se com o conhecimento de Adão. E ficou olhando um bom tempo para os cartuchos. Imaginava como aquilo podia matar uma pessoa.
– E agora? – perguntou.
– Agora nós vamos vendê-las no mercado. Aqueles homens que ficam bebendo lá gostam de comprar balas. Eles só andam armados.
– E por quanto a gente vai vender isto?
– Sei lá. Pelo preço que eles derem. A gente pede 2 reais por cada uma. Se vender as oito, dá pra comprar um bocado de chocolate.
Ao se aproximarem do mercado, ele viu o pai bebendo em um dos bares. Estava sozinho em um canto, ao lado de um grupo de homens que jogavam dominó batendo com força as peças sobre a mesa. O pai parecia triste, aparentava estar alheio ao que acontecia à sua volta. Ele estancou na esquina, ficou atrás do poste:
– Eu não posso ir…
– Deixe que eu vou.
Ele viu Adão aproximar-se dos homens, apresentar as balas. Viu os homens suspenderem a partida, verificarem os cartuchos, darem risada, e voltarem a bater as peças sobre a mesa. Viu o pai chamar Adão, meter a mão no bolso, dar um dinheiro para ele, depois pegar o saquinho com os cartuchos e enfiá-lo no bolso da calça. Adão voltou sorrindo.
– Vendi tudo para aquele homem que está bebendo sozinho. Pagou 1 real por cada bala. Dá pra comprar um bocado de chocolate.
Ele esqueceu o pai, e saiu com Adão para o supermercado. Compraram oito chocolates, cada um ficou com quatro. Foram comer as barras na pracinha que fica atrás da Igreja Matriz. Havia muito tempo ele não comia chocolates. Voltou para casa ainda sentindo o sabor do chocolate. Jantou, e continuou sentindo o sabor do chocolate. O pai não veio para o jantar. Ouviu a mãe dizer: Deve estar enchendo o rabo de cachaça. Aquele inútil. Foi dormir ainda sentindo o sabor do chocolate. De madrugada acordou com o barulho de um tiro, que veio do quintal. Ouviu a mãe levantar-se sobressaltada, e correr para a cozinha. Ouviu-a abrir a porta que dava para o quintal. Ela deu um grito agudo, esganiçado. Depois outro, e mais outro, e mais outro. Quatro gritos espaçados. Como se procurasse fôlego, a cada vez, para dar o próximo grito. Ele correu para o quintal e viu a mãe ajoelhada diante do pai, que estava caído e sangrava muito por um buraco no lado direito da cabeça. Tinha os olhos abertos, e ainda segurava o revólver. A mãe soluçava e murmurava: Meu Deus, esse idiota encontrou as balas.
Publicações
- Minimalismo (Editora alternativa Arribaçã), em 2015 - livro de microcontos;
- Jeremias Ladrão-de-cavalo (publicado pelo Museu de Arte Contemporânea de Feira de Santana), 2014 – livro de contos;
- Piolhos-de-cobra (Editora Scortecci, XI Prêmio Literário Livraria Asabeça 2012), 2013 – categoria contos;
- Publicação de contos na revista Atual - nº 1, setembro de 2006, e nº, fevereiro de 2007;
- Hemorragia; em: Revista Lararana, nº 6, 2001 - conto;
- Publicações de contos em várias edições do suplemento Tribuna Cultural, do jornal Tribuna Feirense, de Feira de Santana;
- Publicação de contos no site literário Outros Ares.